João Rocha

A ONÍRICA PERMANÊNCIA

Então as fotografias da infância. A primeira bicicleta onde conheceu a lúdica velocidade da luz dos sonhos. O abraço sempre jupteriano da mãe e a distância - como uma carta jamais escrita - do pai. Voltaria para o núcleo, nadaria de volta ao útero da insignificância histórica. Cometeria o erro da inlucidez, o pecado do lúdico. Aquele livro nunca iniciado. As duras palavras para o parente confuso, o desprezo para com aquele amigo, hoje, imaginário. Desde criança temia a água - agora compreendia - tinha razão, era um solitário afogamento filosófico para um monólogo jamais notado no dia.

Alguns afirmam que Waterloo surtou na volta para casa depois de um dia estressante de trabalho. Debateu-se pela escaldante calçada improvisada e periférica, perto das saias da menina verdejante e sob o olhar oblíquo do senhor Gylglaski. Este, pálido e possuído pelo intenso desejo de morrer naquele momento ao ver tal balbúrdia insânica e contínua. Waterloo era jovem, pouca idade para tal psicose crônica desavisada. Mas como já sabemos, tal manifestação começou na infância - quando lutou contra alguns tubarões nos oceanos de gelo - no esconderijo tênue nos arredores da escola. Lá, esperou por horas – dizem que foram anos – por Lisarb, mocinha indefesa que acabava de chegar à cidade.

Lisarb ficou em sua mente durante décadas até o inevitável esquecimento naquela desgraçada manhã onde a viu partir de bicicleta para outro planeta. Foi assim que o menino Loo começou a rabiscar monocromáticos versos nas cochas - entre o intervalo do almoço na escola e o fim das tardes de domingo antes da santa missa. O conheci anos depois - num túnel que nos levava à capital do grande globo azul melindroso – estávamos à procura de responsabilidades geométricas.

Era um sujeito honrado. Daqueles que sentia vontade de viajar pelo mundo com algum artefato nas costas. Conversamos por algumas horas antes do grande café vindo de plutão. – A vida…- dizia ele fitando algum pós horizonte - Uma grande canção explicada apenas pela mágica criação humana... – Discordo Loo, nós humanos apenas descobrimos os sons na natureza. – Estais a assistir muitos filmes do Visconti. Dizia ele rindo num humor à francesa.

A tarde era como aquele fruto colhido e que depois de provado – nas árvores impenetráveis – dava um gosto de infância do interior. – Lá, nos confins das gotas de sensações sobre acontecidas...

Waterloo naquela manhã iria pedalar pelos litorais de seus pensamentos mais calmos. Estava fugindo – certamente - do inlúdico aglomerado das constelações de carros e joelhos. Quando trouxeram a veloz ambulância, dizia alguns versos de Murilo Mendes pelos solavancos da saliva. Seus pais souberam tempos depois. Minutos precisos para correr e alcançá-lo.

Waterloo estava sozinho novamente.

Ficou assim por anos. As visitas se limitavam a apenas contempla-lo. Foram ficando escassas rápidas e cada vez mais, sofríveis. Jovem Walter… sua barba crescia como raízes envolvendo os lençóis do destino. Braços que tremiam imperceptivelmente. Olhos que revelavam os mais perturbadores direcionamentos. Torcíamos para Loo reagir nas montanhas dos segundos. Torcíamos e só. A matinal cratera cobrava os trampolins do trabalho. Badaladas nunca soltas. Agendas lotadas até à borda.

Resolvi visitar o viajante psicótico.

Um quarto de luzes avermelhadas. Um estranho globo pulsante à cabeceira da cama. Vinis amarelados de psicodélicas bandas alemães. Werterloo estava ali, coberto com um manto que já foi branco, debatia-se lentamente, falava palavras estrangeiras misturadas a sussurros e clamor contido. Não obstante, havia debaixo da cama moribunda um caderno amassado, no entanto, não empoeirado. Este tinha um cheiro de biblioteca, remédios e outras incógnitas.

Ao abrir, deparei-me com a perplexidade…

De alguma forma, Waterloo descrevia com precisão as manhãs. Longos versos sobre a aurora, as mudanças das cores e o passeio pelos descampados. Descrições mágicas sobre o canto dos pássaros e lacrimejantes viagens por outras dimensões. Corridas por ruas lunares e abismo que levavam a flutuações afagantes. Lisarb - uma dimensão ainda não descoberta pala ciência e apenas sentida por Loo - A mãe, os irmãos alucinados em lambretas indestrutíveis circulando o mundo e criando cilíndricas passagens quânticas...

No entanto... Como?

Como? Se nosso herói estava preso há anos dentro de um quarto petrificado à base de medicamentos assassinos e gélidos? Como o velho Loo destilava longos períodos sobre lugares que talvez jamais tenha conhecido? Li e olhava para ele. Eu imóvel, ele, múltiplo.

Lembrei que de fato havia controversos relatos de moradores do bairro que juravam ter visto Loo caminhando pelos bosques antes das manhãs. Crianças dizem - que o então louco brincava de perseguir nuvens e gostava de se fantasiar de rouxinóis. Voltando aos cadernos; em certo momento, Loo narrava o fim da vida como um delicado acontecimento. Para o inadequado Loo, nos tornaríamos pássaros-memórias sem gaiolas intransponíveis. Cantaríamos sobre os ombros dos transeuntes sempre que estes lembrassem - num canto-dimensão - dos que já foram… Talvez assim fosse lembrado.

Havia algumas dúvidas se quem de fato havia enlouquecido; o jovem Waterloo, eu, ou a contemporaneidade. Um tangível desejo de retornar à infância abrigava as palavras como o abrigo ao peregrino.

Permaneci observando este evento funesto incrédulo de sua real significância dimensional. Resolvi tomar um ar nas esquinas fúnebres da capital - percorrendo com minha bicicleta invisível - os canteiros mágicos do mundo interior.

Foto de Marcus Moller Bitsch.