Fernando Ramos

GÊNESIS (POST MORTEM)

As centopeias e seus aminoácidos desfrutavam do doce leite dos sargaços; espasmos frígidos voltavam a viver contra a púrpura nitroglicerina do espaço. O sereno quente do mormaço dançou entre gêiseres de poros esfoliáceos; cambaleantes vértebras enfim se viram livres de todo cansaço. As pedras esponjosas tocaram com desejo as sanhas das aranhas que lhes roçavam os membros minerais; no mar, todos os sais derreteram sua memória de pedra no eterno ventre de energia líquida. Lívidas borboletas evaporadas criavam as nuvens, que voavam peladas, sedentas ao redor de uma enorme bola de calor. Por desconhecer a dor, os sátiros não imaginavam que a mórbida hiena, enfadada, tramava o cinza das estátuas como a última lembrança do amor. Mas a noite sempre marcha ensimesmante, docemente arrastada por cavalos mágicos ao largo de moinhos de cera, a derreter abaixo do Sol sonambúlico travestido de Lua virgem. Quebrantos temperam as origens do fado pau-a-pique, semeiam seus alpistes aos olhos vociferantes; a carne, sempre em riste. Entre álibis prenunciados pela cartomante imaginária badalam tambores de alfaia, a epiderme da alma serpenteia como lanciforme arraia, trepida em caladas sinfonias sem claves, vislumbra os contornos do silêncio grafitados em palavras que vomitam novos ares e afãs, aguardadas manhãs, galopante saudade do primeiro dia de vida. A noite nunca exige o açoite aos que se trançam em cálidas frontes, aos que palmilham os montes sem medo ou suor; aos que não perdem de vista a eterna ebulição dos horizontes. O mato já dorme tranquilo, o riacho balbucia tenros orgasmos em cada sibilo, a coruja guarda a floresta dos homens enquanto digere vossos desatinos. As veias podem finalmente embalar o sono do sangue venoso. O fundo do poço se abriu ao mar de meu quintal, as mangueiras abraçaram toda incontinência do mal enquanto a terra beijava meus pés descalços, como quem dá outra face ao carrasco. Banhado em unguento, belisco os cotovelos do vento, semeio esporos ao relento e ouço - pela primeira vez - o choro das pedras em que nunca tropecei.