Vlademir Lazo

A DAMA DE PRETO

Toda história inventada nasce de um sonho ou de uma verdade que vimos acontecer. Ou que deveria ter ocorrido. Assim era com Lisa, ou a dama de preto, como passei a reconhecê-la na fotografia. Passar de um plano imaginário (o da pura imagem na fotografia) pulando para um plano real (o de um bar na noite de sábado) era como dar a volta ao redor de si mesmo, fechando o próprio ciclo. E iniciando outro que nunca termina, só escapando dele se o abandonarmos pela metade. Porque com Lisa uma história nunca poderia ser esgotada, somente interrompida. Habitante de quartos fechados em sua casa, ou dos bares da madrugada, perdida entre os enclausuramentos domiciliares e as ocasionais libertações entre uma tequila e outra envolta das boas e más companhias, Lisa ansiava por algo maior que a vida, ou então seria sufocada por ela.

Eu queria levá-la ao cinema, ela preferia os lugares malditos da cidade. Lugares esses que eu também prezava, que me eram familiares, embora eu fosse um estranho a tudo e a todos, sem que me atribuíssem uma história pessoal. A bebida sempre aparecendo como um denominador comum, ajuntando almas, conciliando existências, tornando a todos cúmplices de um crime prestes a ser cometido: o de esquecer. Lisa era uma princesa encastelada a espera de um príncipe vindo de um reino distante ou de um lugar qualquer. Nem santa, nem vadia, mas uma dama ostentando seu vestido preto. De dia ela ficava bem de rosa; à noite, muito melhor de preto. O traje escuro realçava as longas mechas castanho-louros dos cabelos e a brancura exagerada da pele, como um espectro a assombrar a si mesma e ao mesmo tempo enfeitiçar os bêbados e as criaturas da noite. Já eu não possuía vocação para príncipe ou cavalheiro, meu reino não é deste mundo ou de outro.

Ela sentou-se à beira do balcão apenas pelo tempo suficiente para pegar o celular e pedir outra bebida ao atendente. Olhar denso e expressivo que parecia emprestado de alguma heroína de desenho animado japonês. Olhou pro lado e viu um salão eviscerado pulsando com as batidas eletrônicas que saiam das caixas de som. Corpos densamente amontoados e dançando na medida em que o ritmo da música se comprimia e acelerava. Ou espalhados pelos cantos e pelos balcões, reunidos nas mesas, ou que subiam e desciam uma escadaria estreita e íngreme com degraus de metal que dava para o segundo andar. Um desses que vinham da escadaria passou perto de mim na mesa que ocupava e prontamente me reconheceu, um moleque quase quinze anos mais novo do que eu com quem conversava na internet sobre filmes, e com o qual cruzara pessoalmente uma vez ou duas. Ao parar do meu lado, talvez estimulado pela bebida que carregava na mão, depois dos cumprimentos de praxe, confidenciou: “Estou obcecado por uma menina. Primeira vez que acontece. Nem é apaixonado, mas obcecado mesmo”. Só respondi: “É isso ai. Elas não nos namoram, mas nós namoramos elas.” Ele se foi.

Lisa voltou com o copo na mão para a mesa que ocupávamos. Ela ficou um pouco vermelha, bebendo o seu drinque, desviando o olhar do meu, e ao se voltar novamente, fechou os olhos por um momento. Tive anseio de morder-lhe um dos lábios, prendendo-o entre os dentes e mordiscando-o com vontade suficiente para arrancar-lhe uma gota de sangue. Gosto de mulheres que pareçam saídas de poemas de Charles Bukowski, já havia lhe dito há um tempo, e como o próprio Bukowski escrevera, eu a desejava como um homem deseja uma mulher que ele nunca toca, só escreve, e guarda dela poucas fotografias. Ela abriu os olhos e pareceu olhar-me por dentro, como se enxergasse o patife que eu era.

Começamos a falar de sexo. A música devorava o ambiente que nos cercava, derramando-se dos altos falantes enormes instalados pelos cantos do pub. Por sorte, a mesa que a gente ocupava era num local em que a música abafava a conversação relativamente menos do que em outros lugares do estabelecimento, fazendo com que tivéssemos que falar alto ao lado ou na cara um do outro, mas que nos ouvíssemos bem sem que outros tão por perto pudessem entender o diálogo.

Quando você tem vinte e poucos anos, deseja uma menina, sonha com ela, sente que é capaz de fazer de tudo para tê-la ao seu lado, mas não a consegue, você sofre, quebra a cara, lamenta, se esperneia, briga, chora, arranca os cabelos, toma um porre, vocifera contra o mundo. Mas segue em frente, pois sabe que outras surgirão. À beira dos trinta é diferente, se não for agora, na próxima podemos estar demasiado velho e acabado. Lisa devia ter oito ou nove anos a menos do que eu, que já havia vivido muito, mas ainda aprendia com ela, com o que dizia, ou com o que simplesmente observava em seu jeito ou comportamento.

Ainda tentara falar de filmes, querendo convencê-la a levá-la ao cinema. Em vão. “Não sou muito de filmes, não consigo me concentrar, não me prendem”, ela explicava. “Não curto cinema... Talvez fosse só drogada”. Gostava de livros, queria trabalhar na biblioteca da cidade, lá parece ser bem tranqüilo, confidenciara numa troca de e-mails.

Contei de uma ida recente a um bordel acompanhando um amigo, quando fomos para beber umas garrafas de cervejas e conversar com as mulheres.

— Já tavas atrás de puta, ela riu, mais à vontade com o efeito da bebida.

— Não, respondi, Nem vou a cabarés a procura de sexo, gosto desses ambientes como espaços boêmios. E venho acreditando que quem decide se prostituir hoje em dia se encosta mais facilmente nos sujeitos ricos sem precisar virar meretriz, deixando para as menos favorecidas a zona e os lugares fétidos da cidade. Pelo menos é o que vejo.

Até isso os capitalistas filhos da mãe nos tiraram, julgo comigo me deixando levar pelas reflexões embriagadoras noite adentro, sem querer compartilhar do último pensamento com Lisa.

— Cara, o mundo está tomado de prostitutas não assumidas, hoje pensei nas “relações” que meninas que eu conheço têm, e cheguei a essa óbvia conclusão. Tudo prostituta. Fazer o quê? — riu, completando logo em seguida: — Fingir um amorzinho pra ser mais fácil deve ser a saída.

Complementou depois que um que bancasse as bebidas e as drogas para ela já estaria de bom tamanho. Provoco dizendo que não deveria ser nada difícil pra ela conseguir quem estivesse disposto a bancar-lhe essas vontades. Sim, ela respondeu, mas querem vagina em troca.

Não sei se a resposta servia como indireta a minha pessoa, até acredito que não, mas fui fulminado pelas palavras que proferiu. Só consegui me perder em frases um tanto evasivas, sobre como para os homens nem tudo se resume às coisas colocadas dessa maneira, que eles também possuem as suas necessidades, o que por outro lado não justifica merda alguma, admito, o que não quis dizer-lhe na hora.

— Ah, mas é difícil ser mulher, e também não é fácil explicar...

Tento incentivá-la a continuar. Conto que faço sim alguma ideia, e que uma ex- namorada dizia que, por mais que gostasse de uma boa sacanagem, nem sempre era tão fácil para uma garota abrir as pernas, repetindo a mesma expressão que ela utilizara, e se entregar a um homem, falando que tinha vezes ou sujeitos com quem ficara que se sentia como indo em direção a um matadouro.

— Nossa — ela exclamou, continuando, já mais animada: —, tipo, se a mulher quiser dar, o homem enjoa de comê-la (fracassados ou desesperados não estão incluídos), aí se ela quiser se aproveitar dele tem que ficar se fazendo, mas é um saco, eles sempre insistem pra meter a rola. Então se a mina quiser namorar, não pode dar pra ele tão cedo, e ficar na seca é foda, dá vontade porra, mas não pode, se não eles enjoam. Confesso que até enjôo também, se o cara não fizer uma foda bem feita. Amor de pica é o que fica. Aquela sensação de não ter, de querer e ver como é, da conquista, se vai depois do sexo.

—Acho que prefiro ser conquistada a fazer sexo — continuou, ante o meu silêncio no qual por um momento eu mal sabia o que falar, enquanto erguia o copo mais como um gesto teatral durante a pausa que fazia para beber outro pouco, entretida em partilhar experiências de seu universo particular —, já que às vezes são broxas...paus microscópicos...virgens...ou somem depois — completou, soltando uma breve gargalhada.

Respondi como pude, uma vez mais tentando me encontrar no assunto, teorizando que de fato, pelo que é dito, muita garota não consegue se contentar com grande parcela dos homens que encontra, daí os que constituem uma exceção não tem como a mulher não querê-lo, cabendo então ao indivíduo buscar ser essa exceção. Continuei afirmando que também se leva tempo para que se estabeleça uma intimidade entre um casal, são dois corpos estranhos se conhecendo, muitas relações se concretizam no conta-gotas, portanto como ela própria havia defendido, vale muito o que vem antes, a conversa, a conquista, se um poderá preencher o outro de alguma maneira, mas também o que se pode preservar depois. Bons casais, namorados ou simplesmente parceiros sexuais são os que conseguem manter isso e praticar um sexo decente a longo prazo. Difícil é encontrar esse tipo de coisa.

— Sim, ela concordou, é o que faz preferir ficar sozinha. Estou apenas com vontade de dar pra um safado, só que acabo me gamando.

Não queria que falasse de nenhum homem específico. Comentamos como seria bom se pudéssemos levar sempre uma vida boêmia.

— Pô, eu também adoro uma vida boêmia. Me dedicaria à boemia e aos gatos — ela gargalhou. — Mas faz tempo que não saía, eu só tenho um amigo, e a gente não gosta dos mesmos lugares. Somente homens com segundas intenções me convidam para sair, todos os dias, no duro, mas não aceito, não quero ninguém me agarrando. O bom de sair com homem é que não precisa gastar dinheiro — soltou outra risada um pouco forte — Mas tem uns sem noção... Acho que vou convidar aquele amigo para beber se ele estiver disponível. Mas beber eu bebo todo dia, sozinha mesmo. Báh, teve um que saiu três vezes comigo e não tentou nenhuma aproximação. Eu já sabia que era meio assim porque nunca tinha me convidado para sair, mas nem tanto, a gente morre e não vê tudo.

— ‘Viu só, homem sem segundas intenções tu também acha estranho, não é mesmo? E também por mais que o homem possa querer se a mina não tiver afim não vale muito a pena rolar, transas sem vontade de um dos lados costumam ser decepcionantes.

— Geralmente os homens não estão nem ai se a gente não está afim do sexo, depois ficam reclamando de mina múmia.

— Para uma mulher deve ter vezes que é mesmo impossível que role alguma coisa, mas para alguns homens talvez seja ainda mais chato sentir que está transando com o Tutancâmon.

— Mas é tenso saber que uma pessoa está conversando somente porque está esperando o sexo, aí depois do sexo a amizade não fica a mesma coisa. Que chatice. Sexo estraga tudo — gargalhou outra vez. — Tem que separar: pessoas pra sexo e pessoas pra conversar — continuou rindo — alem de não se poder falar tudo com uma pessoa que tu pretende dar uma trepada.

Foto autor desconhecido.