Rafael Lopes

CARANGUEJO 

I

era em uma idade plausível em que ainda se confundiam as cinturas das mulheres com colares de carne. nada de promíscuo. os olhos viam e a imaginação obedecia. flaminautas trazidos da cegueira iminente do sol fincavam os pés de chumbo no chão, feito bombas rubras de sonho, afundavam meio metro terradentro e formavam ocos, que dir-se-ia, davam para uma antessala para o futuro onde meninos ansiosos dormiam. a fala era mole, mas larga, dolente, dita entre dentes de leite, solta entre termos imprecisos, rasgava inconscientemente como tecido frágil, mas era quase nunca, afinal se tratava de uma criança doce. olhando as nuvens, perguntou à sua avó: de que elas são feitas? de pele, menino, as nuvens são a pele morta de Deus.

via as réstias do meio-dia prenhe de micro-organismos, aliás, todo feixe de luz nadava no ar, e em toda a sua profundidade se ocultava um fato ignorado, e na terra preta, e no ferro-cromo. como em um dia em que escondido, deitou leite fresco na terra preta, queria mesmo pequenos vilarejos oníricos ladrilhados de carrara ou um pé de fruta-leite. e então num labor pequeno cavava as mãos nuas, cavava as mãos leves, mãos como brotos de gengibre de tão pequenas, e a terra sob as unhas, e a terra junto à pele, às vezes além da lúnula, ia tocando alguns minérios mais jovens. mas na verdade não desejava nada; imaginação não é desejo, é cultivar uma flor única, regar-lhe somente a sombra, aferir sua temperatura com o dedo indicador embebido em saliva, e nem por um segundo perceber que essa flor não existe.

um caranguejo aguardando tempestades. cangrejo, su cabeza, caja de recuerdos. sus pinzas, monstruosidades delicados, abarcam o tempo ínfimo, a respiração das marés, e acenam nostálgicos, diante das ruínas anunciadas dos palácios de salsugem. sus pinzas cavan ligero, sus pinzas pequeñas cavan reviram a terra, engendram perfumes para as raízes, acalentam minérios, e na lama mole llamada vientre, fabulam planos antiguerra, mesclam as doutrinas do silêncio-musgo e da gosma-urdida, no regaço do pai-barro realizam proezas, promovem festins na podridão underworld mangue-preto, e se pegos subitamente pelas marés, os malditos caranguejos sempre sonhando


II

o sal do suor deturpa a visão, a febre da rotina rota, a rota para a degeneração é o corpo-presente-de- grego. ver-se sem espelhos, a imagem de si mesmo é siamesa de pensamento, de lembrança em lembrança constrói-se infinitas vezes a sua persona, aliciada na cilada do flagrante, o sujeito equatorial trasvestido da carapuça que lhe ser-vil. vai saber quanto custa ser crustáceo

perdoem-me se guardo um coração e não pérolas no cefalotórax: certa noite de farra, cerrada de luzes fora e luzes inside decidi arriscar em um alvo, a dona do vestidinho batido mascava algo que depois descobri, não era chiclete, eram palavras sem conteúdo, mas podia ter me apaixonado de verdeamarelo assim mesmo e seguir pelo resto da noite com ela, a cabeça cheia de whisk, falando merda em meio a música ruim, deslizar as mãos pelo seu colo, como lesmas quase cegas, mas as luzes pontiagudas sempre ferem um romântico ressuscitado, a palidez neon esgrima contra olhos desdenhosos (será que sob essas luzes todas, ela confundiria meu coração com uma maçã?). falhar em resgatar a Hidra, e embora com a boca-gengiva degustando, depois de milênios, o sangue de Hércules, sinto muito por toda a minha linhagem, mas foi a empreitada mais fácil.

Foto de Mikael Aldo.