Herberto Helder

ANTROPOFAGIAS (TEXTO I)

Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão
da voz
a insinuação de um gesto uma temperatura
à sua extraordinária desordem preside um pensamento
melhor diria <<um esforço>> não coordenador (de modo algum)
mas de <<moldagem>> perguntavam <<estão a criar moldes?>>
não senhores para isso teria de preexistir um <<modelo>>
uma ideia organizada um cânone
queremos sugerir coisas como <<imagem de respiração>>
<<imagem de digestão>>
<<imagem de dilatação>>
<<imagem de movimentação>>
<<com as palavras?>> perguntavam eles e devo dizer que era
uma pergunta perigosa um alarme colocando para sempre
algo como o confessado amor das palavras
no centro
não tentamos criar abóboras com a palavra <<abóboras>>
não é um sentido propiciatório da linguagem
introduzimos furtivamente planos que ocasionais
ocupações (<<des-sintonizar>> aberto o caminho
para antigas explicações <<discursos de discursos de discursos>> etc.)
fixemos essa ideia de <<planos>>
podemos admiti-los como <<uma espécie de casas>>
ou <<uma espécie de campos>>
e então evidente para serem habitados percorridos gastos
será que se pretende ainda identificar <<linguagem>> e <<vida>>?
uma vez se designou mão para que a mão fosse
uma vez o discurso sugeriu a mão para que a mão fosse
uma vez o discurso foi a mão
partia-se sempre de um entusiasmo arbitrário
era esse o <<espírito>> o <<destino>> da linguagem
agora estamos a ver as palavras como possibilidades
de respiração digestão dilatação movimentação
experimentamos a pequena possibilidade de uma inflexão quente
<<elas estão andando por si próprias!>> exclama alguém
estão a falar a andar umas com as outras
a falar umas com as outras
estão lançadas por aí fora a piscar o olho a ter inteligência
para todos os lados
sugerindo obliquamente que se reportam
a um novo universo ao qual é possível assistir
<<ver>>
como se vê o que comporta uma certa inflexão
de voz
é uma espécie de cinema das palavras
ou uma forma de vida assustadoramente juvenil
se calhar vão destruir-nos sob o título
<<os autômatos invadem>> mas invadem o quê?