Davy Nabuco

RELATO 70

Cai do céu uma fota d'água e me toca o canto da boca que cheira a fumo e café. Sigo só e não quero mais estar só. Cai do céu uma gota d'água e resfria as lentes até então límpidas dos meus óculos. Minha visão está turva e já não enxergo mais o horizonte. Cai dalgum lugar um-dois-vários-infinitos pingos espessos de qualquer líquido translúcido e sinto lavadas em mim as costas, a fronte e os olhos de mentira; caem as nuvens e as massas de ar e poeira que outrora estiveram acima de tudo; cai o céu e o mundo agora está destampado. Cai o todo-poderoso Universo para sempre expansível e se funde lentamente à negrura do asfalto. Não vejo nada, mas posso expandir pela sinestesia a impressão tátil e perceber a calçada cheia de lodo onde ponho um diante do outro os meus pés cansados. Posso admirar a dança fluída e contorcida entre os fragmentos microscópicos das estrelas e os pedaços amorfos arrancados dos postes pelo vento. E se gostasse de ideias mirabolantes, pensaria por uma sequência irrisória de instantes que Deus, ele próprio, estaria chorando por mim. Pensaria, sim, só para ver a minha realidade delirante ser brutalmente contraposta pela realidade do mundo ou mesmo só para pensar em qualquer coisa e esquecer que, em todas as possibilidades que já prefigurei, sempre sou eu quem chora. Desculpa, não sei se o faço agora, mas o meu rosto está encharcado: ouvi dizer que uma hora seca e imagino que seja verdade, mas se não for, aprendo a me iludir de novo. Besteira.