Clarice Lispector

ÁGUA VIVA (Trecho: estou livre?)

Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prra de quem não prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. Aliás uma pessoa é tudo. Não é pesado se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se tudo.
Parece-me que pela primeira vez estou sabendo das coisas. A impressão é que não vou mais até as coisas para não me ultrapassar. Tenho certo medo de mim, não sou de confiança, e desconfio do meu falso poder.
Este é a palavra de quem não pode. 
Não dirijo nada. Nem as minhas próprias palavras. Mas não é triste: é humildade alegre. Eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. E estremece em mim o mundo.
Esta palavra a ti é promíscua? Gostaria que não fosse, eu não sou promíscua. Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro. 
Vou agora parar um pouco para me aprofundar mais. Depois eu volto.
Voltei. Fui existindo. Recebi uma carta de S. Paulo de pessoa que não conheço. Carta derradeira suicida. Telefonei para São Paulo. O telefone não respondia, tocava e tocava e soava num apartamento em silêncio. Morreu ou não morreu. Nunca esquecerei. 
Não estou mais assustada. Deixa-me falar, está bem? Nasci assim: tirando do útero da minha mãe a vida que sempre foi eterna. Espera por mim - sim? Na hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato que nunca ninguém tocou.
Tenho uma coisa importante para te dizer. É que não estou brincando: it é elemento puro. É material do instante do tempo. Não estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it. Sinto-me tonta como quem vai nascer. 
Nascer: já assisti gata parindo. Sai o gato envolto num saco de água e todo encolhido dentro. A mãe lambe tantas vezes o saco de água que este enfim se rompe e eis um gato quase livre, preso apenas pelo cordão umbilical. Então a gata-mãe-criadora rompe com os dentes este cordão e aparece mais um fato no mundo. Este processo é o it. Não estou brincando. Estou grave. Porque estou livre. Sou tão simples. 
Estou dando a você a liberdade. Antes rompo o saco de água. Depois corto o cordão umbilical. E você está vivo por conta própria. 
E quando nasço, fico livre. Esta é a base de minha tragédia. 
Não. Não é fácil. Mas "é". Comi minha própria placenta para não precisar comer durante quatro dias. Para ter leite para te dar. O leite é um "isto". E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão. 
Estou esperando a próxima fase. É questão de segundos. Falando em segundos pergunto se você aguenta o tempo que seja hoje e agora e já. Eu aguento porque comi a própria placenta. 
Às três e meia da madrugada acordei. E logo elástica pulei da cama. Vim te escrever. Quer dizer: ser. Agora são cinco e meia da manhã. De nada tenho vontade: estou pura. Não te desejo esta solidão. Mas eu mesma estou na obscuridade criadora. Lúcida escuridão, luminosa estupidez. 
Muita coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser "bio". 
Escrevo ao correr das palavras. 
Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido em águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É um rosto nu. E, quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto de nunca. Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga tão indiretamente e intimamente? 
No fundo de tudo há a aleluia. 
Este instante é. Você que me lê é. 
Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo. 
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.