Aden Leonardo

AS SOMBRAS 

Hoje acordei no mesmo horário. Com as mesmas coisas para fazer. Os fantasmas insones, a cabeça vazia, o sangue que não escorreu dessa morte. Fiz meu chá. Por falta de tempo o vidro partiu de tal fervura despejada. Não pensei bem antes. Nunca penso bem. Muito menos antes. A pia da minha pressa para o trabalho ficou verde ralo. Cheiro de mato molhado, com certas queimaduras. Não muito forte. 
Pingou no chão, pelo armário. Tão volátil a água se embrenhando nas matas domésticas! Meu rifle de caça na parede foi olhado com tamanha dor que veio um cheiro seu. Caço leões contratados. Pelas sombras que eles deixam. 
Ontem chegaram umas contas. Entre elas a do telefone em lista de três páginas gerando seu número obsceno. Ainda veio absurdamente repetida. Imagina se vêem tudo que te escrevo? 
Imagino a lentidão dos passos como se fosse música. Não toca mais. A gente dançou no meu quarto, cantando estrelas de um poeta moreno. Um violão de jangada em declive. Seu perfume me faz rodar em volta de mim. Um abraço que não tive. Mais. 
Preciso ir ao banco. Precisava tanto viver! Mas morrer também é preciso. Vou cortar todos os pulsos. Das veias e artérias. Quero a dor quente. Cansei de conter o grito. Vou te chamar na janela esquartejando as palavras do meu corpo. Peço um resgate da aplicação, coisa pouca. Hoje arrumo as unhas. É preciso fingir organização. 
Venta em todos os quadrados que risco seu nome. Todos estão dormindo num mundo de opiniões. Eu hachuro uns. Textura. O que fazemos é textura. O que fiz na sua vida foi textura... Buracos entre rabiscos. A lápis. Cinza. Você não viu o desenho e recorte em modo de amostra grátis da gente no jardim? Mas você insiste nos cubos sobrepostos nas dimensões únicas de um ser. Vai ficar com ela, enquanto eu divido formigas em quarks. 
Vai perder a identidade. Todo autor tem penalidade a ser cumprida. Eis a minha prisão. 
Eu queria só café. Comum mesmo. As evidências do óbvio. Vi você de repente na praça. É engraçado como as aparências têm bom gosto, e converte o mundo nessa cor. 
Hoje o universo deu para testes. Derrubou-me, quebrou. Queimei as mãos em Andrômeda. Coloquei o pano no tanque. Sabão. Não sobrevivo nesse mundo de paz. Vendo murmúrios. 
Fiquei presa um ano e tanto. É uma pretensão racional pagar as contas e morrer à noite. 
Tudo vai ser filme. Com a música que dançamos.